Após a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorizar o uso da vacina contra a Covid-19 em crianças de 5 a 11 anos, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), voltou a fazer ataques contra a vacinação do público pediátrico e chegou a dizer que não vacinaria sua filha de 11.
Infelizmente, a declaração do presidente está longe de ser uma opinião isolada. De acordo com pesquisa feita pela FioCruz, 12,8% dos pais de crianças dessa faixa etária apresentaram hesitação sobre vacinar seus filhos contra a Covid-19.
Nesse cenário, especialistas passaram a refletir sobre a responsabilidade dos pais em relação aos filhos e as consequências do descumprimento desse dever legal. Em artigo publicado na ConJur, a defensora pública Elisa Costa Cruz explicou que, de acordo com o parágrafo 1º do artigo 14 do ECA, é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.
Ou seja, a vacinação não é facultativa no Brasil quando a vacina for aprovada pela autoridade responsável, no caso, a Anvisa, e for incluída no calendário de vacinação. O descumprimento do dever de vacinar os filhos pode levar a algumas punições que variam em gravidade. A mais leve seria a aplicação de multa (artigo 249 do ECA).
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento que discutia se pais podem deixar de vacinar seus filhos menores de idade com fundamento em convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais, fixou a seguinte tese: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico”. “Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.”
Ultrapassada a questão da obrigatoriedade da vacinação infantil, surge outro questionamento: se uma criança não vacinada por escolha dos pais contrair Covid-19, podendo ficar com sequelas ou até morrer, caberia responsabilização criminal dos pais, uma vez que no ECA não há sanção penal? Entre os especialistas ouvidos pela Conjur, ainda não há consenso.
Daniel Gerber, advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico e mestre em Ciências Criminais, sócio de Daniel Gerber Advogados, pontuou que sem sombra de dúvida as vacinas que ingressam no plano nacional de vacinação tornam-se obrigatórias, gerando aos pais que se omitirem quanto ao assunto a responsabilidade direta quanto a omissão em si e, também, quanto aos resultados daí advindos.
Da simples omissão surgirá a imposição das penas previstas no ECA, tanto a de multa quanto eventual suspensão provisória de guarda; de resultados danosos, responderão — os pais — a título de dolo, conforme regramento geral estipulado pelo artigo 13, parágrafo 2º do Código Penal (ou seja, se a criança ou adolescente morrer por falta do cuidado específico, a imputação penal será, em tese, de homicídio doloso em virtude da omissão).
Segundo o advogado, há muito tempo existe na jurisprudência um abrandamento de tal linha causal, admitindo que o resultado seja imputado aos responsáveis a título de culpa. De uma ou outra forma, serão responsabilizados pelo evento danoso.
Porém, na visão de Gerber, para que a obrigatoriedade da vacina contra Covid-19 em crianças esteja presente, se faz necessário a sua inclusão no plano nacional de vacinação, passo inexistente até o momento. “Dessa maneira, se é verdade que as vacinas obrigatórias, quando não aplicadas, responsabilizam os pais pelos eventos deletérios que surgirem em relação a seus filhos, não menos correto é afirmar que a vacina do Covid não está, ainda, incluída nesse rol”, concluiu.
Já Antonio Carlos de Freitas Júnior, especialista em Direito Constitucional, diz acreditar que a mera recomendação de vacinação pela autoridade sanitária já a torna obrigatória para as crianças por força normativa do ECA.
Assim, de acordo com o especialista, a omissão dos pais na vacinação por si só deflagra o sistema de proteção do estatuto, que pode acarretar em diversas sanções aos pais. Criminalmente, os pais poderão, ainda, ser responsabilizados nos termos do artigo 132 do CP: “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”, com detenção, de três meses a um ano. Em caso de morte ou de lesão corporal os pais podem responder pela modalidade culposa de tais crimes podendo ser aplicado ou não o perdão judicial a depender do caso concreto.
No mesmo sentido, Leonardo Pantaleão, especialista em Direito e Processo Penal, entende que, considerando o momento pandêmico atual e a possibilidade concreta de contágio, os pais são responsáveis por eventual omissão penalmente relevante e que, em razão dela, cause danos à saúde ou à vida de seus filhos menores. Nesse sentido, a simples não vacinação das crianças (mesmo que sem maiores consequências) já os coloca como potencialmente incursos nas penas do artigo 132 do CP. Caso, em razão da não imunização, a criança seja contaminada e apresente complicações de saúde, os pais ou representantes omissos responderão criminalmente pelo resultado produzido em decorrência da omissão, ou seja, lesão corporal ou, no pior cenário, pelo resultado morte”, reforçou.
A advogada criminalista Beatriz Esteves, do Avelar Advogados, faz um alerta. Para ela, a discussão deve levar em conta os parâmetros de intervenção mínima do Direito Penal, para que tipos penais não sejam aplicados de maneira exagerada e desvirtuada. O crime de maus-tratos (artigo 136, CP) exige dolo voltado para finalidade específica do tipo penal, seja para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia, o que não parece ser o caso dos pais que deixam de vacinar os filhos pautados em questões políticas, filosóficas e sociais, ressaltou.
Além disso, a infração de medida sanitária preventiva (artigo 268, CP) é norma penal em branco que exige complemento por meio de determinação do Poder Público. Por fim, embora os elementos para configuração de homicídio culposo (artigo 121, §3º, CP) possam estar presentes no caso de eventual morte da criança, a depender do caso concreto, o juiz pode aplicar o perdão judicial, na medida em que a consequência da infração — morte do filho — é tão grave que a sanção penal se torna desnecessária.
Lucie Antabi, advogada criminalista no Damiani Sociedade de Advogados, pontuou que caso haja uma negativa dos pais ou responsáveis em submeter as crianças à vacina, eles poderão sofrer uma sanção administrativa, nos termos do artigo 249 do ECA. Porém, como o Direito Penal é regido pelo princípio constitucional da reserva legal, diante da ausência de ilícito penal previamente estabelecido, não há que se falar em responsabilidade penal. Portanto, os pais poderão ser responsabilizados, mas não na esfera penal. “Tanto é assim que há inclusive o Projeto de Lei 5.555/2020 que busca alterar o Código Penal para tipificar a conduta de não submissão a vacina obrigatória”, lembrou.
Para Gustavo Samuel da Silva Santos, defensor Público de São Paulo, os pais têm o dever de cuidado em relação a seus filhos. “As vacinas não são experimentais e foram aprovadas pela Anvisa. Assim, é dever de todo responsável legal garantir que a criança e adolescente seja vacinado contra a Covid-19”, defendeu.
Porém, sobre eventuais punições aos pais faltosos, a Defensoria de SP entende que primeiro é preciso pensar na sensibilização e educação sobre a importância da imunização antes de se cogitar medidas drásticas, como responsabilização criminal ou civil.
“Reiteramos, por fim, a responsabilidade do Poder Público e dos gestores federais, estaduais e municipais em passar uma mensagem clara sobre a segurança da vacina, não sendo admissível qualquer insinuação sobre a segurança das vacinas em desacordo com as decisões da Anvisa. Do mesmo modo, há responsabilidade de toda a sociedade em garantir a vacinação das crianças e adolescentes, sendo dever da mídia, médicos, professores, assistentes sociais, etc, estimular a imunização de todas as crianças e adolescentes contra a Covid-19”, concluiu.
Da Reportagem Jornal do Trabalhador
Fonte: Conjur